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quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Preto E Branco

"Escrevo peças porque escrever diálogos é a única 
maneira respeitável de você se contradizer."
Tom Stoppard

Um palco vazio. Entram dois homens, um vestido de preto e o outro vestido de branco. Eles representam os dois lados do Autor. Isso a platéia já sabe porque está escrito no programa. Pelo Autor. Ou por um dos lados do Autor, já que o outro era contra. O outro lado do Autor queria que o expectador deduzisse no transcorrer do diálogo que os dois atores representam a mesma pessoa, porque, na sua opinião, dar muitas explicações para a platéia subverte a relação de cumplicidade misturada com hostilidade que deve existir entre palco e público, e nada destrói esse clima mais depressa do que o público descobrir que está entendendo tudo. Os dois lados do Autor discutiram muito sobre isso e prevaleceu o lado que queria ser perfeitamente claro, mesmo com o perigo de frustrar o público. Palco vazio. Dois homens, representando os dois lados do Autor. Um todo de preto, o outro de branco.

Homem de Branco      Preto.
Homem de Preto      Branco.
Branco      Por que não cinza?
Preto      Vem você com essa sua absurda mania de conciliação. Essa volúpia pelo entendimento. Essa tara pelo meio termo!
Branco      Se não fosse isso, nós não estaríamos aqui. Foi minha moderação que nos manteve longe de brigas. Foi minha ponderação que nos preservou. Se eu fosse atrás de você...
Preto      Nós teríamos vivido! Pouco, mas com um brilho intenso. Teríamos dito tudo que nos viesse à cabeça. Distinguido o pão do queijo com audácia. Posto pingos destemidos em todos os "is". Dado nome completo a todos os bois!
Branco      Em vez disso, fomos civilizados. Isto é, contidos e cordatos.
Preto      E temos os tiques nervosos para provar.
Branco      Você preferiria ter dito a piada que magoaria o amigo? A verdade que destruiria o amor? O insulto que nos levaria ao Pronto-Socorro, setor de traumatismo?
Preto      Preferiria. Para poder dizer que não me calei. Para poder dizer "Eu disse!"
Branco      Ainda bem que não é você que manda em nós.
Preto      Não, é você. Sempre fazemos o que você determina. Ou não fazemos. Não dizemos. Não vivemos! Estou dentro de você, fazendo, dizendo e vivendo só em pensamento. Se ao menos eu pudesse sair aos sábados...
Branco      Para que, para nos matar? Pior, para nos envergonhar?
Preto      Melhor se envergonhar pelo o dito e o feito do que pelo o não dito e o adiado. Você sabe que cada soco que um homem não dá encurta a sua vida em 17 dias? E cada vez que um homem pensa em sair dançando um bolero e se controla, seu fígado aumenta? E cada...
Branco      Bobagem. Ainda bem que eu sou o verdadeiro nós.
Preto      Não, eu sou o verdadeiro você.
Branco      Você só é nós em pensamento. Você é a minha abstração.
Preto      Sou tudo o que em nós é autêntico e não reprimido. Ou seja: você é a minha falsificação.
Branco      Você não é uma pessoa, é uma impulsão.
Preto      Você não é uma pessoa, é uma interrupção.
Branco      Mas quem aparece sou eu.
Preto      Então o que eu estou fazendo neste palco, e ainda por cima de malha justa?
Branco      Você só está aqui como uma velha tradição teatral, o interlocutor. Um artifício cênico, para o Autor não falar sozinho. "Escrever diálogos é a única maneira respeitável de você se contradizer." Tom Stoppard.
Preto      Quer dizer que eu só entrei em cena para dizer...
Branco      Branco. E eu...
Preto      Preto. Porquê?
Branco      Para mostrar à platéia que todo homem é a soma, ou a mescla, das suas contradições. Que no fim o destino comum de todos, cremados ou não cremados, não é ser branco ou preto, é ser cinza.
Preto      Mostrar a quem?
Branco      À pla... Onde está a platéia?
Preto      Foram todos embora.
Branco      Será porque não entenderam o diálogo?
Preto      Acho que foi porque entenderam.

Luis Fernando Veríssimo, Preto e Branco. Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo _ Caderno 2, em 25/11/2001.



Quis postar esse texto para vocês porque é um dos que eu mais gosto do Veríssimo. "Preto e Branco: cinza", se vocês observaram esse é praticamente o meu "título", é um tema que eu sempre abordo e que toma minha atenção. Sem contar as características do gênero dramático presente no texto. Tenho certeza que cada um ao seu modo saberá tirar uma mensagem à partir dele. Quem já conhece vai reler e descobrir mais um ponto de vista, e quem conhecer agora, sei que fará uma leitura agradável e, dou uma dica: leia mais Veríssimo, (pai e filho).

Um comentário:

  1. Muito bom gosto, o texto é ótimo! Adoro as crônicas do Veríssimo, também.

    Beijo!

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