"Escrevo peças porque escrever diálogos é a única
maneira respeitável de você se contradizer."
Tom Stoppard
Um palco vazio. Entram dois homens, um vestido de preto e o outro vestido de branco. Eles representam os dois lados do Autor. Isso a platéia já sabe porque está escrito no programa. Pelo Autor. Ou por um dos lados do Autor, já que o outro era contra. O outro lado do Autor queria que o expectador deduzisse no transcorrer do diálogo que os dois atores representam a mesma pessoa, porque, na sua opinião, dar muitas explicações para a platéia subverte a relação de cumplicidade misturada com hostilidade que deve existir entre palco e público, e nada destrói esse clima mais depressa do que o público descobrir que está entendendo tudo. Os dois lados do Autor discutiram muito sobre isso e prevaleceu o lado que queria ser perfeitamente claro, mesmo com o perigo de frustrar o público. Palco vazio. Dois homens, representando os dois lados do Autor. Um todo de preto, o outro de branco.
Homem de Branco Preto.
Homem de Preto Branco.
Branco Por que não cinza?
Preto Vem você com essa sua absurda mania de conciliação. Essa volúpia pelo entendimento. Essa tara pelo meio termo!
Branco Se não fosse isso, nós não estaríamos aqui. Foi minha moderação que nos manteve longe de brigas. Foi minha ponderação que nos preservou. Se eu fosse atrás de você...
Preto Nós teríamos vivido! Pouco, mas com um brilho intenso. Teríamos dito tudo que nos viesse à cabeça. Distinguido o pão do queijo com audácia. Posto pingos destemidos em todos os "is". Dado nome completo a todos os bois!
Branco Em vez disso, fomos civilizados. Isto é, contidos e cordatos.
Preto E temos os tiques nervosos para provar.
Branco Você preferiria ter dito a piada que magoaria o amigo? A verdade que destruiria o amor? O insulto que nos levaria ao Pronto-Socorro, setor de traumatismo?
Preto Preferiria. Para poder dizer que não me calei. Para poder dizer "Eu disse!"
Branco Ainda bem que não é você que manda em nós.
Preto Não, é você. Sempre fazemos o que você determina. Ou não fazemos. Não dizemos. Não vivemos! Estou dentro de você, fazendo, dizendo e vivendo só em pensamento. Se ao menos eu pudesse sair aos sábados...
Branco Para que, para nos matar? Pior, para nos envergonhar?
Preto Melhor se envergonhar pelo o dito e o feito do que pelo o não dito e o adiado. Você sabe que cada soco que um homem não dá encurta a sua vida em 17 dias? E cada vez que um homem pensa em sair dançando um bolero e se controla, seu fígado aumenta? E cada...
Branco Bobagem. Ainda bem que eu sou o verdadeiro nós.
Preto Não, eu sou o verdadeiro você.
Branco Você só é nós em pensamento. Você é a minha abstração.
Preto Sou tudo o que em nós é autêntico e não reprimido. Ou seja: você é a minha falsificação.
Branco Você não é uma pessoa, é uma impulsão.
Preto Você não é uma pessoa, é uma interrupção.
Branco Mas quem aparece sou eu.
Preto Então o que eu estou fazendo neste palco, e ainda por cima de malha justa?
Branco Você só está aqui como uma velha tradição teatral, o interlocutor. Um artifício cênico, para o Autor não falar sozinho. "Escrever diálogos é a única maneira respeitável de você se contradizer." Tom Stoppard.
Preto Quer dizer que eu só entrei em cena para dizer...
Branco Branco. E eu...
Preto Preto. Porquê?
Branco Para mostrar à platéia que todo homem é a soma, ou a mescla, das suas contradições. Que no fim o destino comum de todos, cremados ou não cremados, não é ser branco ou preto, é ser cinza.
Preto Mostrar a quem?
Branco À pla... Onde está a platéia?
Preto Foram todos embora.
Branco Será porque não entenderam o diálogo?
Preto Acho que foi porque entenderam.
Luis Fernando Veríssimo, Preto e Branco. Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo _ Caderno 2, em 25/11/2001.
Quis postar esse texto para vocês porque é um dos que eu mais gosto do Veríssimo. "Preto e Branco: cinza", se vocês observaram esse é praticamente o meu "título", é um tema que eu sempre abordo e que toma minha atenção. Sem contar as características do gênero dramático presente no texto. Tenho certeza que cada um ao seu modo saberá tirar uma mensagem à partir dele. Quem já conhece vai reler e descobrir mais um ponto de vista, e quem conhecer agora, sei que fará uma leitura agradável e, dou uma dica: leia mais Veríssimo, (pai e filho).
Muito bom gosto, o texto é ótimo! Adoro as crônicas do Veríssimo, também.
ResponderExcluirBeijo!